
A vida é uma sequência de travessias disfarçadas de rotina.
Primeiro, a travessia do nascimento – sem aviso prévio, sem manual de instruções. Um empurrão para fora do útero e pronto: já estamos atrasadas para o primeiro compromisso com a existência.
Depois vem a infância, essa fase poética onde tudo é brincadeira até que não é mais. Onde ser boazinha dá mais pontos que ser verdadeira, e onde a menina aprende cedo a sorrir mesmo quando está com vontade de sumir. Ninguém fala, mas já começa ali a travessia do silenciamento.
A adolescência é outro barco furado que nos vendem como navio de cruzeiro. Hormônios, espinhas e a impressão constante de que estamos erradas — no corpo, no desejo, na fala, na vontade. A travessia aqui é barulhenta, mas o fundo do mar está cheio de segredos que ninguém nos ensina a traduzir.
Na fase adulta, somos lançadas ao maravilhoso mundo das escolhas. Que delícia! Escolha o curso certo, o par romântico certo, o emprego certo, o anticoncepcional certo, a roupa certa para não parecer nem demais, nem de menos. Escolha tudo com sabedoria, mas cuidado para não parecer mandona. Ou perdida. Ou louca.
Ah, e a maternidade! Uma travessia sagrada, se você escolher passar por ela — ou for escolhida por ela. É quando percebemos que, até ali, ainda não tínhamos compreendido o que é se despedaçar em silêncio e, ainda assim, levantar para preparar o café da manhã.
E quando os filhos crescem, ou não vieram, ou os amores secam, ou o corpo começa a doer de outros jeitos, vem a travessia da meia-idade. Aquela que ninguém posta no Instagram. A travessia do “e agora?”. Onde reencontramos a menina silenciada, a mulher abafada, a sábia esquecida. E nos perguntamos: “O que sobrou de mim aqui dentro?”
A verdade é que as travessias femininas não vêm com nome. Ninguém anuncia: “Atenção, começa agora sua iniciação na dor, no prazer, na liberdade.” Elas vêm de fininho, vestidas de crise, de cansaço, de saudade ou de desejo súbito de cortar o cabelo e fugir para uma praia deserta com um caderno e uma garrafa de vinho.
Mas talvez o mais bonito — e o mais irônico — é que, em meio a tudo isso, ainda seguimos. Nos refazemos. Voltamos à superfície tantas vezes quanto for preciso.
Porque mulher nenhuma se afoga quando aprende a respirar debaixo d’água.
E quando a travessia vira escolha, e não só sobrevivência, é aí que o milagre acontece.
Beijo-te
Papoula